Leio. Releio. Volto a ler. Viro páginas. Avanço linhas.
Palavras minhas eu assino, dos outros eu transcrevo, dum passado que não teve futuro, dum presente que nunca exi stiu.
Frases que me fazem sorrir, outras que me inundam o olhar.
Histórias que fazem a minha história, remotas ou recentes, e que por muitas letras que destrua ficarão sempre na memória.

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Desejo a você total liberdade para que rasgue páginas neste espaço. Rasgar, romper, transformar algo em outro novo, mesmo que a si mesmo.
A vida é uma sucessão de rasgos, remendos, feituras e escolhas.
Esteja LIVRE!



terça-feira, 4 de março de 2008

Porque eu nasci no Rio

Carioca na certidão de nascimento, na história pessoal e na personalidade, adorei o texto de Ricardo Kotscho.

O momento não poderia ser melhor para ler a declaração de amor que alguém de fora fez à cidade com a qual tanto me identifico.

Nesta semana escrevi em um e-mail: o Rio sempre será a minha cidade, aqui a história é outra e me interessa muito mais. O tal e-mail teve uma resposta com a cara do outro lado da ponte aérea, esqueço-a para celebrar esse jeito carioca de ser.

O texto, na íntegra, para cariocas nascidos ou não no Rio!


Por que não nasci no Rio?

"Ninguém escolhe o lugar onde nasce. Vim pensando nisso no avião que me
trouxe ao Rio esta semana, depois de passar um ano quase todo trabalhando em
casa. Tem muita gente que embarca em São Paulo na ponte-aérea com a naturalidade
de quem sobe num táxi. Mas para mim vir ao Rio virou um acontecimento – cada vez
mais agradável, diga-se.

Já começou pelo piloto da Gol que, ao anunciar a decolagem, foi logo
fazendo uma declaração de amor à cidade, anunciando que o Rio continuava lindo
como sempre e o tempo estava bom com poucas nuvens. Na chegada, repetiu o
discurso. Acho que o piloto gosta dessa cidade tanto como eu.No meu caso foi
mesmo um amor à primeira vista, com o perdão pelo lugar-comum, mas é que não
encontro outra forma de dizer o que senti ao vir para o Rio pela primeira vez,
faz quase quarenta anos.

Acho que foi em 67 ou 68. Estava começando a trabalhar como repórter do
"Estadão" e minha tarefa era fazer matéria sobre as obras de duplicação da via
Dutra (sim, sou do tempo em que a principal estrada do país era de pista única).
O ministro dos Transportes, recordo-me bem, era o coronel Mário Andreazza, que
organizou uma baita festa para os jornalistas do lado carioca da Dutra.

Como era um sábado, dia em que os jornais fecham mais cedo, e já estava
ficando tarde, vim escrever a matéria na sucursal do Rio, que ficava mais perto
do que a sede em São Paulo. Para quê? Gostei tanto desse lugar que terminei de
transmitir a reportagem, e fui ficando. Passei o domingo aqui (digo aqui porque
estou escrevendo a coluna, pela primeira vez, na sede do NoMínimo, no Outeiro da
Glória), e simplesmente não queria mais ir embora.

Pedi transferência para a sucursal, mas o chefe de reportagem, na época o
jovem Clóvis Rossi, simplesmente me mandou parar de molecagem e até ameaçou com
demissão se eu não voltasse rapidamente. De lá para cá, toda vez que venho ao
Rio fico prometendo para mim mesmo que um dia ainda vou ficar de vez, morar
nesta cidade que me lembra uma velha senhora muito maltratada pela família mas
que ainda guarda os belíssimos traços da sua juventude.Guarda também velhos e
bons hábitos dos tempos de província, como se a cidade mais cosmopolita do país
fosse um burgo do interior onde todo mundo se conhece e vai puxando conversa sem
pressa.

O Rio é um lugar onde o motorista de táxi pode dar voltas à vontade (se
você não estiver com pressa, claro) que o forasteiro não reclama porque onde se
passa é possível descobrir alguma coisa bonita em que não tinha reparado ainda.
Também é uma cidade onde não se precisa de companhia para sair à noite. Você
pode ir a qualquer lugar que logo encontra alguém para conversar sobre qualquer
coisa.

No começo da noite de quarta-feira fui ao Belmonte sozinho porque meus
amigos jornalistas trabalham até tarde da noite e outros estavam fora da cidade.
Perto do hotel em que fiquei hospedado, no final do aterro do Flamengo,
sobrevive o Belmonte, um bar dos anos 50 onde estive na minha primeira passagem
pelo Rio, e que vive cheio até hoje.

Fosse em outra cidade, não ficaria uma hora em pé no balcão esperando mesa
– e sem reclamar. Chope que vai, chope que vem, é tão variada a fauna humana,
ouve-se tantas histórias, que o tempo passa sem você perceber, ninguém parece
ter pressa em voltar para casa. Fala-se alto e parece que há uma disputa entre
as mesas para ver quem ri mais desabridamente.

Mulher bonita nem chama a atenção porque são tantas que a beleza já faz
parte da paisagem. O jornal que levei para me fazer companhia ficou esquecido em
cima da mesa. Quem vai querer saber de notícia de jornal numa noite no Belmonte?
Como só tinha compromisso de trabalho na hora do almoço do dia seguinte, saí
cedo do hotel e fiz o circuito de carioca aposentado. Cafezinho no bar da
esquina, onde o dono te recebe como se te visse todo dia, fila do banco repleta
de idosos simpáticos e falantes, pedestres que xingam motoristas na aventura de
atravessar a rua, e vice-versa, um papo na banca de jornal, outro no barbeiro.

Sim, no Rio dá vontade de fazer a barba no barbeiro e foi assim que fiquei
sabendo tudo sobre como anda a cidade no relato do veterano Said, que também me
pareceu um velho conhecido embora nunca o tenha visto na vida. Todo mundo no Rio
vira um velho conhecido depois de alguns minutos de conversa. Vi até uma
trombada de bicicletas e, em vez de brigar, os dois pilotos caindo na
risada.

O trânsito é tão complicado ou até pior do que o de São Paulo, mas a
caminho do centro velho, passando pelo Catete, indo até a Lapa, que andou
tomando um belo banho de loja, são tantos os encantos que mesmo o feio fica
bonito como na decadente paisagem da Praça Onze – as pichações, os prédios
centenários abandonados, famílias jogadas fora nas calçadas.

Passei pouco mais de 24 horas no Rio garantindo aos amigos que da próxima
vez virei a passeio, e não a trabalho como tem acontecido nestes muitos últimos
anos. Já que a gente não escolhe o lugar onde nasce, todo mundo deveria ter
direito a uma vez na vida morar na cidade pela qual um dia se apaixonou.

Quando meus pais vieram de navio da Europa no pós-guerra, o navio ancorou
primeiro aqui, mas minha mãe estava passando mal com o calor e nem desceu à
cidade. Seguiram direto para Santos e poucos dias depois nasci em São Paulo.

Por que não nasci no Rio?, pergunto-me até hoje, cada vez que chega a hora
de ir para o Santos Dumont – aliás, o aeroporto com a vista mais linda do mundo.
Apenas quarenta minutos de vôo separam as duas maiores cidades do país, mas
entre as duas noto a cada viagem que há séculos de diferença na maneira de
encarar a vida.

Por mais que queiram destruí-la e avacalhá-la – e os próprios cariocas
adoram falar mal da sua cidade – ninguém quer sair daqui e, como lamenta o
motorista do táxi, cada dia chega mais gente".

(Ricardo Kotscho)

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