Porque hoje a saudade bateu forte...
Meu Pai: No primeiro momento, após a notícia que você tinha caminhado para a sua morte, senti imensa raiva de você. Como podes pretender cortar a tua dor à custa da dor dos que quis deixar! Se não pôde suportá-la, porque não a dividiu com os que te amam?
Chegando ao cemitério, por saber que era eu quem esperarava seu corpo chegar, constatei que a tragédia havia se consumado. Como que se eu já não soubesse durante todo o percurso. Relutei para te olhar. Preferi estar ao lado do corpo vivo da vítima, que via parte importante da sua vida esvair-se de maneira tão súbita e dolorosa. Preferi deixá-lo meio as rosas para não registrar na memória o retrato de tão trágico evento.
Aos poucos, talvez pelo dever de filha que mais com seu gênio se parecia , talvez pela vergonha da minha covardia, percebi que teria que, pela última vez, enfrentar-te. E olhei seu rosto...seu corpo...
Fiquei perplexa. Não havia cadáver algum. Você estava inteiro. Como quem apenas repousava. Do semblante forte, sereno e inexplicavelmente iluminado emanava, de maneira eloqüente, aquele seu magnetismo que é traço de sua personalidade, suprimindo milagrosamente as marcas que o tempo lhe deixou.
Senti a sua força como talvez desde criança não me lembrava de ter sentido. Como se estivesse sábia e serenamente protegendo a mim e a todos nós.
De repente me senti segura e feliz... como quando ganhei seus inúmeros beijos, abraços e telefonemas(me lembro que ligava todos os dias para lhe pedir a benção!).O Du, como eu e minha irmã lhe chamavamos, estava ali, mais vivo e presente do que nas últimas vezes que o vi.
Sou atropelada por um turbilhão de lembranças. Quase que instantaneamente as razões da suas últimas escolhas explodiram na minha frente. Era lógico e evidente que este haveria de ser o caminho escolhido por você...
Lembrei-me que durante toda a minha vida, desde onde minha memória consegue enxergar, temi pela sua vida. Cada noite que você se atrasava, eu ficava acordada, com os ouvidos atentos aos barulho, temendo que alguma tragédia pudesse ter lhe ocorrido. Sua coragem e valentia se por um lado me envaidecia - qual menina não gostaria de ter um pai do estilo John Wayne? - por outro me assustava.
Incontáveis vezes nós presenciamos todo o tipo de homens rudes e perigosos encolherem-se como crianças ante a sua presença. O único que ousou lhe enfrentar o fez traiçoeiramente de emboscada, e aqui você estava: morto?
O fato é que mesmo sendo uma das pessoas mais cultas, inteligentes e corteses que conheci, jamais transigiu a nada que pudesse macular sua honra e sua ética, dentro da mais ampla definição que estes verbetes possam encontrar em qualquer compêndio. O custo desta defesa, nunca esteve em questão. Poderia ser a vida, como tantas vezes inconseqüentemente (hoje já não sei se penso assim...) pôs em jogo, como o de seu Patrimônio.
Seu espírito malandro nunca o permitiu ser humilhado ou dominado por qualquer situação.
Foi assim com seu acidente grave, cirurgias, cateterismos. Você os tirou de letra. Largou incontinente os quatro maços que fumava por dia e o hábito ancestral da carne vermelha diária. Foi assim com a perda de seu patrimônio ou de tantos outros revezes que jamais derrubaram sua altivez.
Havia entretanto algumas coisas das quais você não podia se privar pois eram partes de sua vida como a água é dos peixes.
A mais importante era sua ligação com os pássaros, com a natureza. Sempre fez de cada torneio, por mais longínquo que pudesse estar, o seu recreio, a sua querência. Mesmo morando no Rio 40 graus, você jamais se deixou embrutecer.
Aí veio a sua escolha... Não de uma vez, mas irreversível e crescente ao longo dos últimos anos. Ultimamente já sabia que não poderia mais fazer suas caminhadas vigorosas pela manhã.
O seu mundo desabou...Urrou aos ventos, ofendido como uma fera acuada, que iria tocar fogo em tudo. Pela impossibilidade de sequer se defender no seu recanto, que há muito já era sabidamente perigoso.
Que jugo o destino lhe reservara! Recolher-se voluntária e humildemente ao cárcere dos muros de sua casa e da “segurança“ das grades.
Seria mais fácil pedir aos leões que pastassem ou aos cavalos que voassem...
Você nunca se deixou humilhar. Não seria o destino que ousaria tal façanha.
...E decidida e corajosamente abateu a este caminhando para os tiros certeiros no coração.
Bem ao estilo malandro. Bem ao seu estilo.
Pai, quero lhe falar, que por mais que sua falta me doa, eu o admiro mais ainda e como nunca antes possa ter lhe admirado. No fundo mesmo, estou muito orgulhosa da sua corajosa decisão de assumir as rédeas da sua saída, podendo deixar para trás seus 62 anos vividos tão intensamente à sua maneira.
Ergo as mãos para acenar meu adeus, porque sei pelo seu semblante, que já está de volta aos mares da vida. Pescando ao seu estilo, cuidando e conversando com os pássaros...
Eu cuido do pessoal por aqui.
Siga em paz. Dú.